sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Libertação

"O ignorante evita os fenômenos mas não o pensamento;
o sábio evita o pensamento mas não os fenômenos."

Recomeçar

"Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto, queiras só metade."

Miguel Torga

Nascimento último

Como se não tivesse substância e de membros apagados.
Desejaria enrolar-me numa folha e dormir na sombra.
E germinar no sono, germinar na árvore.
Tudo acabaria na noite, lentamente, sob uma chuva densa.
Tudo acabaria pelo mais alto desejo num sorriso de nada.
No encontro e no abandono, na última nudez,
respiraria ao ritmo do vento, na relação mais viva.
Seria de novo o gérmen que fui, o rosto indivisível.
E ébrias as palavras diriam o vinho e a argila
e o repouso do ser no ser, os seus obscuros terraços.
Entre rumores e rios a morte perder-se-ia.



António Ramos Rosa
No Calcanhar do Vento - 1987
in Antologia Poética

Quero ausentar-me

Quero ausentar-me do olhar e caír no vazio... onde nada me prende...
Quero ausentar-me da emoção e cair na solidão... onde nada me espera...
Quero ausentar-me da razão e cair na verdade... onde tudo é pureza e me inunda...

Cartas inúteis / Malcolm Lowry

Há dias em que o céu e o mar parecem coalhar um no outro. Tudo o que rodeia se funde numa espécie de treva acinzentada.
Sinto as horas correrem a minha imobilidade até ao mais longínquo osso. A memória foge refugia-se na releitura dalgum livro que nunca voltei a folhear. É uma arte muito antiga, esta de me sentar perto da janela com um livro aberto nas mãos da memória.
Esta manhã, caminhando pela floresta, um instante de imensa lucidez; a vereda encharcada, verdadeiro lamaçal, as árvores tristes gotejando, e as folhas mortas amontoadas: tudo estava lá. Não consigo acreditar que um dia nunca mais caminharei por aquela vereda.
Há dias assim, em que me sinto projectado para dentro de imagens duma memória futura, plena de luminosidade, onde certamente já não estarei. Tenho saudades dos lugares onde nunca estive, porque só nesses lugares, dizem, a vida continua.
Envelhece-se mais devagar ao anoitecer. A morte enrosca-se como um gato ao colo do dono, e faz uma trégua até que de novo amanheça.
Sou um homem nocturno, a luz do dia aumenta o conhecimento da minha escassa eternidade.

Contaram-me que existem homens queimando a vida a cuidar de jardins. Regam, transplantam, enxertam, podam, cavam - como se este contínuo trabalho de renovação os prolongasse para além de seus próprios corpos. Parece que a existência destes homens se reduz à lenta e misteriosa aprendizagem de nascer, morrer e renascer.
Na verdade, nenhum ciclo das estações impede aqueles homens de morrer. Parecem mais demoradamente, somente isso, porque os jardins são labirínticas arquitecturas mentais onde podemos resguardar o corpo de qualquer voragem do tempo.
A mim, basta-me o espanto da flor que murcha quando, no mesmo ramo, outra flor expande as pétalas ao sol.
Vivo na ilusão de conseguir enganar, alguma vez, o medo dos dias sem ninguém. Por isso construí jardins de areias e cinza, jardins de água e fogo, jardins de répteis e de ervas aromáticas, jardins de minerais e de pedras - mas todos abandonei à invasão da selva e das alucinações.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Alguém iluminou o meu grito silencioso...

"Sou uma criatura estranha que se nega a cada despertar mas que mesmo assim, acorda, deixando-se morrer.
Tenho uma alma magoada e sem cura que me desgasta o corpo e a mente nos dias que passam dolorosamente sem me trazerem qualquer alento. Sofro de tanto sofrer e sofro tanto por não me querer. Mudaria o mundo para uma paz incompreensível que trazia o mais belo dos suspiros a todos aqueles que se sentem a eles mesmos. Já me cansei de tanto querer, que hoje não quero nem procuro. Vou-me deixando em palavras que me saem do fundo e do vazio, da angústia e do desespero, mesmo sabendo que a cada segundo que passa é mais um que não volta mais. E nem mesmo as palavras mais reveladoras e sentidas que possa partilhar me afastam do que carrego em mim, todas elas me cercam, numa tempestade que me destrói lentamente. Só preciso de um sitio calmo e discreto que me traga o silêncio que me leva a vida que nunca agarrei, não peço mais. Apenas uma tranquilidade estupidamente dolorosa por saber que tudo em mim se esgotou há muito tempo.
De nada me valem as palavras maduras e experientes na vida que nada me diz se nenhuma delas é capaz de me ler como sou. Sou tudo aquilo que não fui e que nunca chegarei a ser, talvez por isso me pese a consciência distorcida e paranóica. Não me lamento por tudo aquilo que aparento ser, apenas me odeio por não ter onde pertencer ou simplesmente querer algo mais do que a própria vida em si… Esvaneço na vida como num nevoeiro cerrado de uma cidade deserta em plena madrugada."

... É inútil hesitar no limite ...