sexta-feira, 31 de julho de 2009

O regresso para dentro...

Ana Hatherly

“Era uma vez uma ausência que andava em missão de viagem. Quando chegava a uma encruzilhada dava três voltas sobre si própria para perder por completo a noção do caminho por onde viera atingindo assim com regularidade as regiões efémeras do esquecimento. Depois regressava a casa…”

E eu:

Regressava dali, onde o vazio era leve e a ausência chamava e queimava…

Regressava dali onde a cinza consumia, escapando por entre os dedos e deixava no ar um silêncio mágico, o único abraço aqui…

Regressava dali onde cada encruzilhada me esquecia e me abandonava, aqui, nos dias…

Assim me encontrava… Ali onde germinavam as cinzas, florestas densas de outro mundo, indizíveis aqui...

Regressava dali, onde ninguém esperava para resgatar os olhos que se afundavam para lá das reticências…

Regressava dali, onde cada encruzilhada suspendia a morte e resgatava a memória daqui, presa no efémero…

E cada vez me demorava mais nesta ausência… sem paragens… por ali, onde o vento apagava todas encruzilhadas e me devolvia o sal eterno para reescrever o sangue…

E cada vez me demorava mais neste esquecimento que encerrava todas as lembranças…

terça-feira, 21 de julho de 2009

Terror de te amar

Terror de te amar num sítio tao frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeiçao
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Antologia
Círculo de Poesia

Não se perdeu nenhuma coisa em mim

Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Evadir-me, esquecer-me, regressar...

Evadir-me, esquecer-me, regressar
À frescura das coisas vegetais,
Ao verde flutuante dos pinhais
Percorridos de seivas virginais
E ao grande vento límpido do mar.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética I

Neste momento o meu desejo é realizar-me

Neste momento o meu desejo é realizar-me.
Mas como o irei conseguir,
a menos que me tome num planeta
onde habitam vidas dotadas de inteligência?
Não é esse o objectivo de cada um de nós?

Uma pérola é um templo
construído pela dor à volta de um grão de areia.
Que nostalgia nos construiu o corpo e à volta de que grãos?

Quando Deus me lançou como um seixo
para esse lago maravilhoso,
perturbei a sua superfície em círculos inumeráveis.
Mas quando alcancei as profundezas,
tornei-me muito calmo.

Concedei-me o silêncio e afrontarei a noite.
Conheci um segundo nascimento
quando o meu corpo e a minha alma se amaram e desposaram.

Kahlil Gibran
Areia e Espuma

segunda-feira, 20 de julho de 2009

A luz nas trevas do indizível


“Mesmo que se engane, o desenvolvimento natural da sua vida interior há-de conduzi-lo devagar, e com o tempo, a outra compreensão”.
Rainer Maria Rilke

“Deixe amadurecer inteiramente, no âmago de si, nas trevas do indizível e do inconsciente, do inacessível ao seu próprio intelecto, cada impressão e cada germe de sentimento e aguardar com profunda humildade e paciência a hora do parto de uma nova claridade: só isto é viver artisticamente na compreesão e na criação”.
Rainer Maria Rilke

No teu deserto...


Um livro sobre a vida, que sussurra:
A coisa mais difícil e mais bonita de partilhar entre duas pessoas: o silêncio

Existem alturas em que a beleza é tão devastadora que magoa
Existem Viagens sem regresso, sem repetição - nada dura para sempre, só as montanhas e os rios - viagens que se passam entre a lucidez e a cegueira, entre o olhar e a alma, entre o sonho e a razão; segundos que voam para lá do tempo e se perdem nas areias do deserto mais profundo e mais puro, para nunca mais serem encontrados. Esses são os momentos que transformam uma vida, aqueles momentos em que nos vestimos de deserto e nos sentimos aconchegados.
Aqueles momentos em que nos despimos como o deserto e, apesar disso, nos sentimos protegidos.
É quando perdemos a densidade do pensamento, que ganhamos a intensidade súbtil da abundância e realizamos a riqueza do deserto...
E quem não entende esta escrita, é porque realmente não consegue escutar o silêncio entre cada palavra que Miguel Sousa Tavares escreve. É a vibração desse silêncio que une as palavras e desenha a simplicidade de cada mensagem projectando-se como uma miragem para aqueles que têm coragem de olhar para o seu deserto. Foi este silêncio que me tocou...
Realmente fiz esta Viagem! Obrigada...
«Parecia-me que já tínhamos vivido um bocado de vida imenso e tão forte que era só nosso e nós mesmos não falávamos disso, mas sentíamo-lo em silêncio: era como se o segredo que guardávamos fosse a própria partilha dessa sensação. E que qualquer frase, qualquer palavra, se arriscaria a quebrar esse sortilégio.» «Eu sei que ela se lembra, sei que foi feliz então, como eu fui. Mas deve achar que eu me esqueci, que me fechei no meu silêncio, que me zanguei com o seu último desaparecimento, que vivo amuado com ela, desde então. Não é verdade, Cláudia. Vê como eu me lembro, vê se não foram assim, passo por passo, aqueles quatro dias que demorámos até chegar juntos ao deserto.»

O que nos une...

"Como hei-de segurar a minha alma
para que não toque na tua?
Como hei de elevá-la acima de ti,
até outras coisas?

Ah, como gostaria de levá-la
até um sítio perdido na escuridão
até um lugar estranho e silencioso
que não se agita, quando o teu coração treme.

Pois o que nos toca, a ti e a mim,
isso nos une, como um arco de violino
que de duas cordas solta uma só nota.

A que instrumento estamos atados?
E que violinista nos tem em suas mãos?
Oh, doce canção."
Rainer Maria Rilke

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Eu Sou

"Longo é o tempo que leva a minha jornada, e o caminho é longo!
Saí na carruagem do primeiro raio de luz, e continuei minha viagem pelos ermos dos mundos, deixando vestígios meus em muita estrela e muito planeta.

O mais extenso percurso é o que leva para mais perto de ti, e a aprendizagem mais complicada é a que leva à extrema simplicidade de um acorde.

O viajante precisa bater a todas as portas alheias para chegar à sua, e é preciso vagar por todos os mundos exteriores para afinal chegar ao santuário mais íntimo.

Meus olhos andaram por toda parte antes que eu os fechasse e dissesse: "Aqui estás!"
Esta indagação e este clamor - "Onde?" - misturam-se às lágrimas de mil torrentes e afogam o mundo na onda desta certeza:
- "Eu sou!"
Rabindranath Tagore

O entendimento...

"Os milagres não acontecem em contradição com a natureza, mas apenas em contradição com o que conhecemos da natureza."
Santo Agostinho