sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Cartas inúteis / Malcolm Lowry

Há dias em que o céu e o mar parecem coalhar um no outro. Tudo o que rodeia se funde numa espécie de treva acinzentada.
Sinto as horas correrem a minha imobilidade até ao mais longínquo osso. A memória foge refugia-se na releitura dalgum livro que nunca voltei a folhear. É uma arte muito antiga, esta de me sentar perto da janela com um livro aberto nas mãos da memória.
Esta manhã, caminhando pela floresta, um instante de imensa lucidez; a vereda encharcada, verdadeiro lamaçal, as árvores tristes gotejando, e as folhas mortas amontoadas: tudo estava lá. Não consigo acreditar que um dia nunca mais caminharei por aquela vereda.
Há dias assim, em que me sinto projectado para dentro de imagens duma memória futura, plena de luminosidade, onde certamente já não estarei. Tenho saudades dos lugares onde nunca estive, porque só nesses lugares, dizem, a vida continua.
Envelhece-se mais devagar ao anoitecer. A morte enrosca-se como um gato ao colo do dono, e faz uma trégua até que de novo amanheça.
Sou um homem nocturno, a luz do dia aumenta o conhecimento da minha escassa eternidade.

Contaram-me que existem homens queimando a vida a cuidar de jardins. Regam, transplantam, enxertam, podam, cavam - como se este contínuo trabalho de renovação os prolongasse para além de seus próprios corpos. Parece que a existência destes homens se reduz à lenta e misteriosa aprendizagem de nascer, morrer e renascer.
Na verdade, nenhum ciclo das estações impede aqueles homens de morrer. Parecem mais demoradamente, somente isso, porque os jardins são labirínticas arquitecturas mentais onde podemos resguardar o corpo de qualquer voragem do tempo.
A mim, basta-me o espanto da flor que murcha quando, no mesmo ramo, outra flor expande as pétalas ao sol.
Vivo na ilusão de conseguir enganar, alguma vez, o medo dos dias sem ninguém. Por isso construí jardins de areias e cinza, jardins de água e fogo, jardins de répteis e de ervas aromáticas, jardins de minerais e de pedras - mas todos abandonei à invasão da selva e das alucinações.

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